Afinal, o que pensa Frei Betto que Caxias não podia ouvir?

ENTREVISTA

 

Depois de imprimir estrondosa derrota a um abaixo-assinado liderado por pais reacionários de estudantes do Colégio São José, Frei Betto brindou a imprensa caxiense com um agradável e bem-humorado bate papo na Livraria e Café Arco da Velha. A nuvem de palavras denuncia os tópicos destacados na coletiva e antecipa um pouco da forma como esse “perigoso" frade dominicano, estudioso de jornalismo, antropologia, filosofia e teologia, praticante da teologia da libertação, escritor de mais de 70 livros, premiado nacional e internacionalmente vê o mundo.




Pergunta – A palavra comunismo carrega todo um estigma. O que o senhor diria sobre essa questão?

Frei Betto – A palavra comunismo significa colocar em comum os bens da Terra e os do trabalho humano. Aliás, os sacerdotes, na consagração da missa, usam essa expressão: colocar em comum os bens da Terra e os frutos do trabalho humano, essa partilha. Curiosamente, os fiéis não se dão conta do conteúdo socialista dessa oração eucarística. Na verdade, não é Jesus que era comunista. Os comunistas é que estão muito próximos de Jesus. Não vou chamá-los de cristãos, porque eu não quero batizá-los nominalmente. Mas eu diria que eles estão na linha de Jesus, e por isso mais próximos da salvação do que os capitalistas convictos; do que aqueles que colocam o dinheiro como seu Deus; a propriedade privada acima dos direitos humanos.

 

Pergunta – Ontem (13/junho), tivemos um episódio lamentável, que envolveu pais de alunos matriculados numa escola religiosa. A gente vê contradição entre o que pregam a irmãs naquela escola e a atitude pais. O que o senhor diria a respeito?

Frei Betto – É um direito deles me rejeitarem. Eu só lembro com muita gratidão o apoio que as irmãs São José deram a minha família quando eu fui preso, em Porto Alegre, em 1969, inclusive a ponto de hospedarem meus pais nas instalações do colégio, em Porto Alegre. E lamento que com o passar do tempo essas religiosas tenham mudado tanto de postura e hoje aceitem essa pressão dos pais. Na verdade, aceitaram com medo de perder as matrículas. O capital falou mais alto do que os direitos humanos e faltou solidariedade a um irmão de fé e de igreja como eu sou.


Pergunta – O senhor enfatizou em sua palestra, a questão da educação política. Que diferença o senhor estabelece entre a forma de educar politicamente dos evangélicos [fundamentalistas] hoje, e os setores progressistas, de esquerda?

Frei Betto – Bem, primeiro a gente não pode generalizar. Muitos pastores de igrejas evangélicas são progressistas e fazem um excelente trabalho de evangelização. Mas existem alguns segmentos evangélicos, como existem católicos também, que são fundamentalistas. Eles incutem nos fiéis o que Etienne de La Boétie, no século XVI, chamou de servidão voluntária: a ideia mítica de que a palavra do padre ou do pastor é a palavra de Deus. Ela não é. Muitos fiéis, até por ignorância, porque são pessoas com pouco estudo, com pouco aprendizado e que encontram acolhida forte ali naquela comunidade eclesial, elas seguem piedosamente a palavra desse pastor, desse padre. Não questionam. E o pastor ou o padre dizem: – Não vote nesse partido, ou nesse candidato, porque é comunista, é contra o projeto de Deus, e esse outro aqui é a favor. É quase como você dizer a uma criança: – Não entre no quarto escuro porque lá tem um bicho papão. A criança não questiona. Ela imagina que aquilo seja verdade. Nos últimos anos, Partidos progressistas, como o PT, infelizmente, deixaram o trabalho de base. E o resultado foi a eleição de Bolsonaro em 2018. Os espaços abandonados foram ocupados pelo fundamentalismo cristão, pelo narcotráfico e por milícias armadas. E hoje não é fácil resgatar esse terreno. Mas é preciso fazê-lo. Existem metodologias, principalmente inspiradas em Paulo Freire. É um trabalho árduo, urgente e demorado. Não é algo que se faça do dia para a noite.

Os proprietários da Livraria e Café Arco da Velha receberam Frei Betto e a imprensa para a coletiva
Foram 43 quilos de livros vendidos na noite da palestra, mas nem todos haviam conseguido o autógrafo do autor.

Eu propus ao governo federal formar pelos 50.000 educadores populares. Isso é o mínimo num país com as dimensões do Brasil. Não sei se haverá condições disso. Tenho muito receio que não. E, portanto a deseducação política do povo, através do segmento fundamentalista e de grandes meios de comunicação vai prosseguir e prosperar.  



Pergunta – Frente ao novo contexto que se coloca, principalmente com as redes digitais, como se faria esse casamento?

Frei Betto – Eu não sou especialista mas assim como se faz, através das redes, a deseducação, é possível fazer a educação. É possível criar redes confiáveis com propostas midiáticas que informem e atraiam as pessoas. Conheço muitas pessoas simples, que vivem na periferia, e que acompanham sites, acompanham o YouTube acompanham os noticiários de dentro das redes que são muito pertinentes, calcados na realidade, contra fake news. Então, creio que isso precisa ser mais disseminado junto aos segmentos populares.


Eu acho que é possível, sim, vencer essa batalha midiática. Mas é preciso se dedicar profissionalmente a ela. Não é algo para se improvisar, não. Se os setores progressistas não fizerem isso, a direita, cada vez mais, é especialista nisso e continuar fazendo.

  


Pergunta – Em sua opinião, o podcast que o presidente Lula lançou recentemente está nessa linha?

Frei Betto – Já é um início. Vamos ver como é que prossegue, né? Foi um primeiro passo. Eu acho que já devia ter feito. Ele devia fazer um diálogo com a população pelo menos uma vez por semana. É o mínimo a ser feito. Nesse ponto, Bolsonaro era muito ágil, dava à fala dele uma repercussão na mídia. Eu acho que o presidente Lula deveria, também, pensar em formas de ter a sua voz, as suas ideias, as suas posturas, cotidianamente expressadas para a nação Brasileira.


Pergunta – Em sua palestra, o senhor falou que as redes digitais levam ao narcisismo e à individuação. Mas elas levam, também, a um outro ponto que é o da discussão. Paradoxalmente, é em grupos de WhatsApp que as pessoas se sentem pertencendo. O senhor conhece alguma experiência que conseguiu romper um pouco essa prática que parece estar levando a sociedade inteira a um abismo?

Frei Betto – Não, mas conheço outra coisa. Proponho que um professor pergunte a seus alunos quantas horas por dia eles dispendem nas redes digitais. Eles vão mentir, que são uma ou duas (sabe-se que a média brasileira é quatro, uma das mais altas do mundo). Mas isso não importa. Depois, esse professor deve propor que escrevam as dez coisas que mais aprenderam, no dia anterior, nas redes. Vocês vão ver o aperto para chegar a três. Esse exercício é didático, porque leva à consciência do tempo que ele perdeu. Na verdade, ele não estava navegando. Ele estava naufragando. Ele ficou captando coisas, uma aqui, outra ali... Mas o que aprendeu? A pergunta é essa. O exercício leva à percepção de que há uma enorme perda de energia, de tempo.

 
Pergunta – Alguns cientistas já dizem que esse excesso levará ao sacrifício de uma geração inteira. Como o senhor vê isso?

Frei Betto – Sou totalmente favorável às novas tecnologias. Toda nova tecnologia leva a um susto, um impacto. Creio que é preciso, também, valorizar o lado positivo dessas novas tecnologias, não ficar apenas demonizando. Mas também é importante alertar para os riscos que elas trazem. O mais importante é debater o conteúdo. Primeiramente, eu sou a favor de que essas grandes plataformas estejam na mão do poder público. Começa por aí. Acho criminoso deixar na mão da iniciativa privada, que levará a interesses pecuniários, que superem o respeito aos direitos humanos. Segundo, tem que ter uma regulação, sim. Importa preservar a liberdade de expressão, mas com respeito à lei.

 

O que importa, para mim, é que possamos viver numa sociedade de partilha, onde ninguém seja privado de seus direitos elementares. Agora, para mim, não importa se a chamamos de comunismo, de solidarismo... que ismo ela vai ser. Só quero justiça, e paz, que é a proposta de Jesus para a humanidade. 



Pergunta – Algo que preocupa é dizer-se que escola não é lugar de política, isso em todos os níveis. O que o senhor teria a dizer sobre isso?

Frei Betto – O que existe na vida que não tenha política? A qualidade do café da manhã que a gente toma tem a ver com a política do país em que nós estamos e com classe social a que pertencemos. Se a gente tem férias ou não, tem a ver com a política. Se a gente vem para cá de carro ou de ônibus, tem a ver com a política. Tudo tem a ver com a política.

 

Quando a gente fica doente, o tipo de tratamento que a gente recebe, ou não, tem a ver com a política. Não há nada apolítico há, sim, o mito de que existem coisas que são políticas e outras não.  



Durante 36 anos a igreja católica na Espanha disse que os cristãos não devem se meter em política e ela apoiava e incensava e celebrava a ditadura do general Franco. Isso não é política? Os cardeais americanos diziam que a igreja não deve se meter em política, mas foi o cardeal Spellman quem abençoou as tropas que foram promover genocídio no Vietnã. Isso não é política? Ou seja nada há apolítico. Todos dizem que a igreja católica não tem nada a ver com política, só que nós somos chefiados por um político: O papa é um chefe de estado, que tem cadeira na ONU. Então como é que a igreja não tem a ver com política? Além do que, Jesus morreu como prisioneiro político né?


Pergunta – As instituições de ensino, cada vez mais, se negam a assumir esta visão. Como é que vamos arrebentar esse mito constituído, essa inconsciência coletiva?

Frei Betto – Na cultura atual do mundo só existem duas lógicas predominantes; a analítica e a lógica dialética. A lógica analítica predomina porque o capitalismo a adota e ele é hegemônico. Eu sempre digo que não há globalização. Há Globocolonização: a imposição ao planeta de um modelo de sociedade consumista e hedonista. É o modelo dos Estados Unidos, arraigado à lógica analítica. O exemplo é aquele quadro do Jornal Nacional, durante a pandemia, chamado solidariedade, em que apareciam empresas doando cestas básicas para população carente. Aquilo é uma lógica cuja característica fundamental é trabalhar somente os efeitos. Jamais se pergunta por que é precisa dar cesta básica para as pessoas; por que as pessoas não têm alimentos suficientes; por que existe fome no mundo. Nunca se vai às causas. Se você vai às causas aí estremecem-se as bases do capitalismo. Então, a cultura analítica naturaliza a desigualdade, a injustiça a criminalidade. – A polícia matou um negro. É bandido, não é? Mas por que a polícia mata em vez de prender? E por que esse rapaz foi assaltar em vez de trabalhar? Quando você coloca o porquê, se a lógica for dialética, você vai às causas. Agora, essa incomoda e muito. Nós vivemos numa sociedade que transforma a lógica analítica em mito. Lembro de uma nação indígena mexicana que acreditava que se eles não levantassem bem cedo e fizessem um ritual, o Sol não nasceria. Eles nunca ousaram dormir além do tempo, com medo de o mundo ficar escuro para sempre. Aquilo estava impregnado neles então é isso.


A cultura vai sedimentando, mitificando determinadas noções. E as pessoas não se perguntam se poderia ser diferente, ou qual a causa disso. Isso é próprio da naturalização.  



Em toda a minha vida conheci uma única família que, a todas as empregadas domésticas, além de pagar o salário, oferecia condições dignas de vida e dizia que escolhessem o curso que quisessem fazer, e pagava. Nessa família, três ex-cozinheiras se formaram na universidade. Quem é que faz isso? A gente naturaliza como se a pessoa tivesse nascido para ser faxineira. Então, se paga o salário e ela que se vire para poder melhorar de vida, né? Nós naturalizamos a desigualdade. Nós não pensamos: – Como é que eu faço para que essa pessoa saia totalmente da pobreza, seja promovida socialmente. A gente não chega a isso.

 
Pergunta – Como o senhor enxerga a questão dos sindicatos, que foram tão atacados e hoje se mantêm tentando assegurar os direitos que os trabalhadores já têm, o que está sendo muito difícil?

Frei Betto – Olha, eu lamento que o sindicato também tenha abandonado o trabalho de formação política dos seus sindicalizados, ou mais amplamente dos não sindicalizados mas que fazem parte da base sindical. Estranhei muito que não houvesse uma forte mobilização quando o governo Temer propôs a precarização dos direitos trabalhistas. Isso para mim já demonstrou como os sindicatos brasileiros estão desarticulados transformaram-se em postos de privilégio de dirigentes sindicais e sem uma base mobilizada. Os sindicatos foram muito afetados pela perda do imposto sindical. Então, não há outra maneira, hoje, a não ser fazendo um trabalho de educação política da categoria para que ela se sindicalize e, espontaneamente, opte pela contribuição sindical, direito que foi preservado em lei.

 


Agora, o trabalhador só vai chegar a isso se tiver consciência da importância do sindicato na defesa dos seus direitos. E essa consciência vem do trabalho de educação política.


Então, em resumo, não entendo um sindicato não ter uma escola sindical, uma escola de formação política.. Muito mais importante do que ter um departamento médico, um departamento disso daquilo... Tudo isso é importante, mas se não houver esse trabalho de formação, as categorias vão ficar cada vez mais desarticulas, esgarçadas, sem representatividade, e o capital vai passar o rolo compressor por cima, porque eles, sim, são muito bem-organizados né? As federações de indústria, a Confederação Nacional da Indústria, a turma do agronegócio... esse pessoal é muito bem-organizado. Basta ver a bancada que eles têm no Congresso.


Pergunta – Costumo dizer que não dá mais para a gente chegar com aquele jargão dos “companheiros e companheiras”. Hoje está mais para tiktokers e youtubers... Por outro lado, sabemos que Paulo Freire é estudado no mundo inteiro. Não seria essa a hora de a gente implementar um “método Paulo Freire” na questão digital, para atingir essa população mais carente e mostrar que conseguir a rede digital é só uma rede digital e não uma rede social?

Frei Betto – Concordo plenamente, mas não tenho uma receita. Isso tudo é novo e, como disse ontem, não sou uma pessoa que domina essas redes. Mas creio que você tem toda a razão. É preciso avançar nessa direção. Como é preciso estarmos atentos à questão da reforma de ensino. Graças a Deus o Presidente Lula colocou um pé no freio, porque a depender do ministro da Educação, ela teria seguido e se trata de um verdadeiro horror. Mas essa é uma questão para outra entrevista!


Fotos: Gabriel Schmit

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4 comentários:

  1. Geni Onzi Isoppo15/06/2023, 18:44

    O que há de proibido ou nessas falas que deturpem “valores” da família? Que Cristo é esse desses pais que proibiram a palestra? Que valores têm esses pais que ameaçaram fazer atrocidades na frente na escola, caso a palestra não fosse cancelada? Valores cristãos é q não são! A escola São José sempre primou pela formação de valores de solidariedade, justiça e paz, mas a segurança de todos corria sério risco. Esses pais não têm noção do quanto prejudicaram a própria escola. Muito triste. Pergunto: quem proibiu a palestra, leu pelo menos um livro do escritor? Recortes Fakes de falas ou livros fora de contexto fizeram a cabeça desse grupo. Assim como outras FAKES que demonizavam o outro é isso foi aceito passivamente, gerando ódio ao outro. Que valores carrega que tem essa postura?

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  2. A fala está no YouTube?

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    1. A palestra não foi gravada em vídeo por nós.

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  3. Ótima entrevista. Muito importante, e sempre esbarramos no mesmo ponto: educação!

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Obrigada por seu engajamento

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