Loteamento Recanto das Cascatas, sonho intercalado por pesadelos



Patrícia Veiga Guterres, eleita presidente da AMOB, no loteamento Recanto das Cascatas, localidade de Santa Bárbara, no distrito de Ana Rech, em Caxias do Sul, a 9 de junho último, não é mulher de meias palavras. Mas também não é mulher de falar sozinha. Ela é uma mulher do tipo que agrega, que ajuda, que aposta no coletivo, que ouve. Esse é o perfil de entrevistado que rende boas matérias, porque a conversa flui solta, autêntica.

 

O Recanto das Cascatas é um bairro com cerca de 400 moradores. E Patrícia vai logo avisando: “É um bairro bem distante, passando Santa Bárbara de Ana Rech. A gente está abandonado. A gente não tem asfalto... a gente não tem nem container de lixo. Precisaria no bairro uns 20 containers [10 amarelos e 10 verdes] a gente não tem nenhum”.
 
“A gente também não tem creche ou escola. Não tem postinho de saúde perto. Lâmpadas pra iluminar a rua de noite? Eu e o meu marido que botamos porque senão as pessoas ficam no escuro. A luz do vizinho, por exemplo, a gente que instalou. Fiz toda a instalação dos filtros porque senão eles não iam nem ter. É um abandono total. A gente é bem unido e se ajuda, porque se não é a gente... a gente não tem o mínimo, né. Aqui no bairro, a gente se acostumô a dizer que é invisível". 

Crianças, escola, mobilidade 

“A gente se reuniu para fazer uma casinha pras crianças não ficarem na chuva quando esperam o ônibus para ir pra escola. É a gente que tampa buraco, que cava vala, que enterra cano, alarga rua... Os que podem dão carona pros outros. Eu trago três pessoas para o centro quando venho trabalhar, de carona, pra gente poder trabalhar aqui no centro". Com Patrícias, as histórias correm soltas. Mas elas não vêm em tom de lamúria, não. Elas vêm fortes, sólidas, apontando a garra daquela comunidade, que não se rende.

Solidariedade, comunhão, nós por nós 

“A gente faz tudo por conta: É um ajudando o outro. Os cadeirantes e as crianças especiais a gente leva lá no postinho de manhã e depois quando termina outro vai buscar. É nós por nós. A gente não tem o mínimo. A Prefeitura não ajuda e algum político que aparece ainda diz que está tudo certo”. 

E como uma coisa leva a outra, como rima em poesia, Patrícia vai declamando: “A gente precisa de asfalto. Quando chove não tem como andar no bairro. As ruas são estreitas. Não tem como circular ônibus com o barro. Então, imagina os carros e as pessoas. Hoje, por exemplo, que tá chovendo, tem famílias que ficam ilhadas literalmente. Não tem como saí".
 

"O carro ou não desce, ou não sobe. Então tem que ir até um pedaço para depois pegar as pessoas. É bem complicado. Eu tô tentando fazer o que posso. Visitei o Jornal Pioneiro, falei nas rádios, tento mostrar a realidade do bairro na mídia para ver se sensibilizo alguém. Estou abrindo a boca para ver se eles nos ouvem e nos enxergam. A gente é invisível”, explica a moradora, nesse momento, sim, com tristeza no olhar, que se fixa no horizonte.  


Mas não há tempo pra tristeza. É preciso aproveitar o espaço de fala, porque o relógio corre. “Não tem coletivo que circule pelo bairro. O ônibus da Visate só entra em quatro horários: 5:45; 12;45,17h e 19h. Ele deixa a gente na frente da Marcopolo ou, no máximo, até o Imigrante. Não faz integração. A alegação é que a gente não tem asfalto. Dizem que a gente não tem coletivo por causa do asfalto”. Patrícia e seus vizinhos de bairro conhecem bem o sentido da expressão jogo de palavras. Conhecimento que vem da vida, da dor, da injustiça para a maioria deles.

Vida, dor e morte 

A essa altura, o moradora resgata uma memória que o bairro quase naturalizou, mas que deveria chocar qualquer indivíduo que se diga humano. “Não tem um agente de saúde que entre no bairro. A gente teve uma situação no ano passado:

Um vizinho enfartou: a SAMU não foi lá. Ele ficou dois dias morto em cima da cama. O filho velando e nós tentando tirar ele de lá. Dependendo do lugar lá não vai SAMU, não. Eu perdi dois vizinhos de infarto porque não deu tempo.”   


“Eles não vão. As crianças têm que descer e subir morro para poder pegar o ônibus da escola, que passa lá embaixo, na rua principal, porque os ônibus não conseguem subir. As estradas são estreitas eles não conseguem manobrar. A gente precisava que fosse uma máquina nas transversais e alargasse o caminho pra poder o ônibus pegar as pessoas.”
 
Nesse momento, Patrícia lembra: “Tem um cadeirante lá em cima. A gente sai para ir trabalhar, pega ele lá em cima e larga ele lá embaixo. Ele fica lá na casinha que a gente fez que é aquela onde as crianças ficam esperando o ônibus. Aí tem que ter “uma alma” pra botar ele dentro do ônibus. Isso é todos os dias. Dói de vê.” 

O bairro tem pouco mais de 20 anos. Foi uma área de chácaras. Com o tempo, proprietários começaram a lotear. “O advogado Balen é quem tá fazendo as nossas escrituras lá. Parece que ele é um terceirizado da Prefeitura [eu tenho para mim isso], num acordo com o Prefeito. Mas a gente tem uma situação que é um lado do bairro que é irregular.


Direitos, propriedade, escritura

"Tem uma ação da justiça com o Banrisul, que diz que o banco é o dono das terras. A gente tem um acordo com o Balen. Cada família paga R$ 227,00 de prestação mensal para o Balen, em 24 parcelas, para regularizar a situação. Aí, a gente pode ter as escrituras, porque todos compraram seus terrenos. Todos pagaram”, explica Patrícia, em tom de quem presta satisfação, quase se defendendo. “Ele prometeu que agora em novembro a gente vai receber as escrituras". "Mas, na verdade, ninguém explica nada para nós. A gente não tem reunião, a gente não sabe se isso vai acontecer, mas ninguém deixa de pagar porque não quer descumprir o acordo que fez. Ninguém diz nada sobre como está a situação. Meu boleto está acabando. Faz dois anos que a gente paga. São mais ou menos umas 200 famílias essas que pagam a mensalidade”. A moradora vai relatando, como quem tece uma longa colcha de retalhos. “Ano retrasado o Adiló foi lá, uma vez. Nem desceu no nosso bairro, porque lá é ruim de chegar. Ele foi em Ana Rech, na frente do campo de futebol e fez uma reunião na rua. Fez uma fala pequena, disse que ia ajudar a regularizar o bairro e foi isso. Então, a gente tem esperança de que saia essa escritura, né.

Recanto das Cascatas

O destino, muitas vezes, é cruel. Não se contenta em maltratar a carne. Ele sufoca sonhos, debocha da esperança. Mesmo assim, os moradores do Recanto das Cascatas continuam sua luta. Sequer dão-se conta da desfaçatez que é morarem no Recanto das Cascatas e terem em suas torneiras um esquálido fio d’água, vindo de centenas de metros de mangueiras, escondidas como cobras na beirada das vielas. “A água que a gente tem, a SAMAE liberou para nós um ponto lá em cima. A gente se reuniu, comprou mangueira e puxou pro bairro inteiro. Então, as mangueiras, [desse tipo de jardim, sabe] elas ficam na beirada da rua. A gente fez um jeito de todo mundo ter água, mesmo precária. A luz nas casas passa, mas as ruas não têm iluminação. Internet a gente tem, mas celular não tem sinal, não tem uma antena, só por wi-fi. Se eu estou sem wi-fi, não tenho telefone”, vai declamando Patrícia, com sua dor-poesia.

“Nosso esgoto é a céu aberto. Ele cai na direção a São Gotardo, ou cai na direção do Faxinal, do outro lado. A gente não tem o mínimo do mínimo do mínimo”, diz uma vizinha que acompanha o passeio pelo bairro e se deixa contaminar pela coragem de Patrícia, a Presidenta da Associação de Moradores do Recanto das Cascatas.


“Se um adolescente quer fazer uma faculdade, não tem como ir, pois o último ônibus que entra no bairro é às 19 horas. A minha filha, por exemplo, tem que dormir na casa de colegas se eu não puder buscar e pouca gente tem carro”, conta Patrícia. “E esse ônibus das 19h deixa as criaturas na frente da Marcopolo e aí tem que pegar outro ônibus para ir para algum outro lugar. Pensa uma estudante sozinha, que saiu da faculdade às 22h, o perigo que corre. A que horas vai chegar em casa, para enfrentar outra maratona para poder sair de casa de manhã cedo para trabalhar? É um horror,” admite a moradora. “Não parece que se está falando de Caxias do Sul, que abriu suas portas para tanta gente e deixa seus moradores viverem desse jeito. É um absurdo, sendo que a gente paga imposto sobre tudo, como todos os outros moradores da cidade”, reclama.



Um coro afinado de vozes 

Conversamos com diversos dos moradores, no bairro, e optamos por não usar seus nomes verdadeiros, para evitar uma exposição que, em determinados casos, chega a ser humilhante. 

J. V. conta mais uma história lamentável. “Eu chegava em casa do trabalho e ia abrir a rua pra poder arrumar água pra nós”, relembra. 

 S. C., 31 anos e quatro filhos, diz que o maior problema é a chuva. “Eu não consigo levar meus filhos para o colégio por causa da estrada. Tenho que caminhar cinco quadras pra chegar na parte mais pra baixo do bairro, descendo uma lomba. Até chegar embaixo, a minha filha já tá totalmente molhada e eu tenho um bebezinho de colo. Então, eu ando com o bebezinho no colo, junto, e aí nos dias de chuva não tem como descer”. A senhora viu. Ali é liso e aí a gente cai tombo, né".  

E às vezes até vai parar na UPA, com lesão pelo corpo. A Patrícia trincou duas costelas e eu tô afastado do meu serviço. Já rompi os tendões do braço num tombo descendo a rua porque estava chovendo e tinha geada, relembra um morador.  


Ao aproximar-se da “rodinha” de conversa, outro morador relembra: “Pras pessoas terem noção, compramos 400m de mangueira do nosso bolso para nós poder ter água. A SAMAE liberou um ponto, botou o hidrômetro e deu. A gente teve que se virá. A mesma coisa é com o esgoto, que a gente não tem. Fica tudo a céu aberto.” 

 M. R., 24 anos, mora no bairro há quatro anos. “Como todos, a gente teve que correr atrás de água”. Apesar da queixa em relação às dificuldades, M. R. diz gostar do bairro porque é tranquilo. Como as mangueiras são frágeis e têm bitola estreita, se quebram e furam, o que gera verdadeiro transtorno aos moradores. A queixa dele diz respeito à energia elétrica também, e, evidentemente, às condições de mobilidade. 

“Quando chove é ruim; eu não consigo nem subir aqui às vezes, né. Tem que descer, fazer a volta no bairro pra poder chegar lá aonde tem ônibus. E se desce de carro nessa pirambeira é um perigo. Tem que sair de casa meia hora antes. Já aconteceu umas quatro vezes de ficar empenhado. Não sobe e pra descer não adiante ter freio. Muita gente já bateu em portão de casa e caiu em barranco”, relembra o morador.  


M. J., 49 anos, repete a queixa dos vizinhos. “O problema maior aqui no caso seria pra dar uma ajeitada nessa rua". "Não tem banheiro na casa dela", aponta a vizinha. Mas a moradora, resignada, interrompe:” mas já tem luz. O vizinho emprestou. A água vem comunitária, dali da rua.”


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