"O homem nunca se educou totalmente. Estamos na antessala da humanidade"


Em passagem por Caxias do Sul, o teólogo e escritor Leonardo Boff deixou alerta impactante, ao conversar com um grupo de jornalistas, destacando a importância do sentimento de humanidade entre homens e povos, o que se atualiza com a agressão Israel/Palestina que vivemos.


Boff destaca: "Como evitar esses eventos que surpreendem cientistas e climatólogos? Apenas podemos ajudar as pessoas a prevenirem-se face a eles, cada vez mais frequentes e danosos. Acho que vocês, no Rio Grande do Sul, perceberam isso. Na Europa, o aquecimento nunca visto há séculos. No interior da Índia, o calor superou a 50°. Se calcula que mais ou menos 700.000 pessoas, entre crianças e idosos já tenham morrido em função da mudança de clima.

"Temos que mudar nosso conceito de políticas públicas, nossa forma de educação e a maneira como habitamos. As cidades têm que  renovar a forma de estruturação das habitações, das fábricas. Temos que incorporar esses novos elementos para não irmos ao encontro de tragédias mais dramáticas do que essas que já assistimos".


Globalização e emergências climáticas 

O aquecimento global vem do processo industrialista mundial, que se deu na forma de capitalismo no ocidente e na forma de socialismo na Rússia, na China, no oriente como um todo, mas que tem um mesmo método, que é o assalto sistemático aos bens e serviços da natureza, aos recursos, dizimando  ecossistemas, derrubando florestas inteiras, provocando desequilíbrio no clima, alerta Boff. 
Essas agreções, segu ndo ele, expõem os limites da Terra, que  não suporta o projeto da modernidade que é o do crescimento ilimitado. 

A cada ano o país tem que ter um aumento no seu PIB que produz só bens materiais,  critica o teólogo. Tudo o que é importante para nós como amor, sensibilidade, solidariedade, a compaixão, inteligência, a boa vontade, não entra no PIB. No PIB entram apenas bens materiais produzidos.

Acenderam -se todos os sinais vermelhos. Entramos no “cheque especial”. E como não queremos diminuir o consumo, especialmente o das classes opulentas, a Terra responde mandando mais calor, mais tempestades, mais vírus, mais doenças, mais guerra sociais,  segundo Boff.

A maioria dos chefes de estado é negacionista em relação a esse quadro. Pior ainda, os diretores das grandes empresas, que se encarassem essa realidade deveriam mudar os modos de produção,  de consumo, de distribuição. Deveriam mudar hábitos, respeitando os limites da Terra, não produzindo para acumulação, mas para atender as demandas humanas com decência e com suficiência, ensina ele.

Pela forma como habitamos a Terra e como consumimos, destruímos a cada ano entre 70 e 100.000 espécies  que há milhões de anos viviam na Terra. E há 1 bilhão de espécies ameaçadas.

A pandemia do COVID 19  mostrou-nos o necroceno e hoje vemos o piroceno. Em diversas partes da Terra ocorrem incêndios como testemunhamos recentemente nas Filipinas, na Austrália, no Canadá, são incêndios que espalham resíduos tóxicos pelo mundo todo, alerta. Poucos dias depois da entrevista, o Brasil passou a enfrentar uma série de incêndios na Amazônia, paralelamente às enchentes que  iniciaram um processo de destruição em Santa Catarina.

Ou vamos na direção de nossa sepultura, ou mudamos, com consumo moderado, acessível a todos, suficiente e descente. E não apenas nós seres humanos, porque não queremos ser antropocêntricos, mas toda a comunidade de vida que também precisa de água, de nutrientes, ou seja, plantas e animais. Esse é o desafio que se coloca, segundo Boff.

O Papa Francisco e Noam Chomsky, maior intelectual contemporâneo dos EUA, dizem que a guerra da Ucrânia vai ascender na forma de agressividade até a utilização de armas nucleares. E se isso ocorrer, teremos a soma 1+1=0, ou seja, o fim da humanidade. O Papa costuma dizer que estamos numa guerra mundial aos pedaços, porque no mundo há pelo menos 18 lugares de guerra.

 
Na África, há uma grande dizimação, e a nossa imprensa nada diz. Fica tudo concentrado em cima da Ucrânia. A imprensa, de modo geral, é o braço ideológico das grandes empresas, contribuindo para a falta de consciência do homem, acusa o teólogo.


Quando Boff teceu o comentário, não esfrentávamos, ainda, um dos maiores horrores da história da humanidade: a dizimação da população palestina por   forças armadas de Israel, espalhando medo, dor  e preconceito a todos os recantos do planeta.

A continuar nessa toada, haverá o colapso da civilização. Não vai ter água suficiente; as pessoas não conseguem se adaptar ao clima e a noivas situações; milhões vão ter que migrar, porque as terras ficaram inabitáveis; safras serão perdidas. Então, nós estamos numa decisão civilizatória (e as grandes empresas querem isso): Ou continuamos assim como está ou mudamos, para sobreviver. O problema é como conseguir isso. Acho que é um processo de educação coletiva da humanidade. Temos que reinventar o ser humano.

Papa  e a economia de Francisco e de Clara

Trata-se de uma economia do suficiente e do decente. Como fazem os povos andinos? O Butão coloca a economia em 13º lugar entre 18 itens. Primeiro item saúde do povo, segundo item, alimentação saudável. Terceiro item, educação e lá no meio quase no fim, a economia. Eles vivem com o suficiente e o decente. Os povos andinos criaram a categoria do viver bem, que significa que a Patcha Mama nos dá tudo de que que precisamos. De resto, que nos ocupemos para conviver, para criar nossa cultura, contar nossas histórias etc.

A causa principal de muitos de nossos problemas é o capitalismo, que tomou conta do mundo e o globalizou. A China só politicamente é socialista. Economicamente, ela tem o capitalismo mais selvagem que existe na Terra. Lá eu vi fábricas imensas com criancinhas de 8 e 10 anos montando chips e eletrônicos. Trabalhavam 12, até 15 horas por dia. O grande problema é a globalização do capitalismo. Ele virou uma cultura do capital muito difícil de desmontar. E está de tal maneira azeitado que se paralisar pode gerar um problema social mundial tão grave quanto seu funcionamento.

Ele é covarde, cruel, inumano, assassino da vida. Mais de 300 milhões de pessoas passam fome e um bilhão está ameaçado de entrar nesse sistema. Então, o capitalismo ele não se deixa converter, ele quer lucro e lucro não com solidariedade, mas com competição, um vencendo o outro. 


Consciência para a transformação social

Nossa esperança vem de dois pontos: a) que a própria natureza destrua o capital. Não lhe dê mais recursos. O homem explorou tanto que tornou a Terra estéril, inabitável; b) que a resistência que vem dos jovens, dos sindicatos, das comunidades, grupos de produção agrícola, orgânica que trabalham no território, não o país inteiro. São exemplo, as 111 cidades (na Escócia e na Eslovênia, para citar algumas) que hoje trabalham o território no município. O território, assim como a natureza o configurou, com o tipo de montanhas, de rios, de pássaros, de árvores e populações. Essa é a grande saída, porque o sistema como tal, é insustentável.

Podemos trabalhar o território e a ponta avançada dessa discussão é o bioregionalismo: trabalhar aquele território que você não precisa viajar, faz pequenas empresas, uma ajudando a outra, democracia participativa, onde todos entram, não há excluídos. Sabemos, com base científica, que temos todos a mesma base biológica. Todos temos os mesmos tijolinhoso mesmo tipo de cimento que une esses tijolinhos desde a bactéria mais antiga, de 3,8 bilhões de anos, passando pelos dinossauros. Temos a mesma fórmula, somos, de fato, irmãos, só que não nos tratamos assim. Isso significa não ter só uma relação mercantilista com a natureza, mas uma relação afeto, de respeito a cada planta, cada animal...

Temos que pensar numa economia verde, circular, uma economia que trabalha junto com a natureza e não contra ela. Isso é possível. O problema é: quando se dá virada da consciência. O COVID-19 foi o primeiro ensaio para uma grande crise da humanidade para a virada de consciência. Porque ele não respeitou  limites. Atacou ricos e pobres, todos.

E essa virada, eu acho que deve começar com aquilo que a gente chama de revoluções moleculares, começar com a gente mesmo. Você se envolvendo, tratando diferente a água, as plantinhas, não matando os animais, não queimando nada, reciclando materiais. Se isso começar na escola educando as pessoas, se começa a fazer a grande revolução. Visitei escolas que tomaram isso a sério, especialmente em Santa Catarina e São Paulo: extraordinárias crianças que plantam, cuidam de passarinhos que encontram machucados. Vi crianças que cultivam orquídeas e depois as levam para a floresta, porque lá é o lugar delas.

Entre erros e acerto, o que esperar do Brasil

"Pela primeira vez Lula começou a falar de ecologia. Ele não tinha essa preocupação ecológica. Somos amigos a 40 e eu disse a ele: “Você tem que assumir três ou quatro pontos em seu discurso sobre ecologia. E eles estão lá, sempre aparecem.  Lula assumiu consciência de que o Brasil é decisivo para o futuro da humanidade. Que aqui tem todos os elementos que podem constituir a mesa posta para as fomes e sede do mundo. Mas na parte da comunicação, ele tem que chamar especialistas que manejem os dados. As pessoas não sabem o que é um projeto político de estado. Não se faz esse trabalho".

E outra coisa que o PT descuidou é a Educação Popular, porque não adianta tudo que eu estou falando se não chegar nas bases, lá embaixo. É preciso articular os movimentos de base, para criar uma frente enorme para cobrar do governo. Para o governo a gente não deve pedir nada. A gente deve cobrar dele, porque a função dele é atender as demandas do povo. Nada de ficar pedindo esmola, nada disso, ensina Boff.


Fé franciscana que alimenta

"Nós franciscanos somos educados a respeitar os passarinhos, as plantas e animais, todo mundo, irmão, irmã etc. Mas nos anos 80, quando tive um conflito com o Vaticano, o papa me escreveu uma carta destacando dois pontos: a) você tem que se mostrar mais sério. Então deixei crescer a barba; b) estudar os verdadeiros problemas da humanidade e da Igreja. Então, analisei e vi que nenhum problema importante era da Igreja. Os problemas eram a vida, o planeta, o futuro da nossa civilização. E foi aí que eu inventei a ecoteologia da libertação. Porque a chave da teologia da libertação é a opção pelos pobres, contra a pobreza, a favor da libertação. E na opção pelos pobres, tem-se que colocar o grande pobre, que está sendo ultra explorado, e que é a Terra. Então, temos que fazer uma ecoteologia da libertação.

A ecologia tem que estabelecer laços com a natureza, os seres humanos que permitam profunda igualdade e que as diferenças não sejam vistas como algo decadente. As diferenças, como uma desigualdade. Podemos ser humanos de diferentes maneiras diferentes – yanomami, paraguaia, brasileira e nos aceitar, mas nós ainda não chegamos a isso.

Eu tenho a impressão de que o homem nunca se educou totalmente. Nós estamos na antessala da humanidade. Não chegamos à plenitude humana, porque não nos tratamos humanamente. Ver o outro como semelhante, que eu respeito e aceito, não como inimigo, conclui Boff.




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