Entrevista Denise Pessoa
Denise Pessoa deixa claro o papel da mulher na câmara de deputados e na vida política nacional
Na entrevista que segue, Denise Pessoa conta um pouco da experiência vivida em Brasília, na condição de Deputada Federal eleita em 2022 pelo PT, e revela algumas questões dos bastidores daquele espaço, fazendo, também, uma análise do cenário político nacional
Meu pai, Oscar Pessoa, era presidente do bairro Garbin, na região do São José. Há 40 anos aquela área era periferia da cidade né? Meu pai lutou pelo saneamento, pela escola, por uma UBS, por todas essas questões sociais da cidade, né? E eu fui acompanhando isso. E, criança, ia junto nas reuniões. Ele chegou a ser vice-presidente da UAB (União das Associações de Bairro). Então, a questão comunitária sempre esteve muito presente em minha vida. E a minha mãe era diretora da escola municipal do Bairro (Colégio Padre Antônio Vieira). Ela também militava, participava das greves de professores... Eu fui criada entre greves, reuniões, assembleias..., né?
E a opção pela arquitetura?
Quando cheguei à adolescência, eu não sabia direito o que fazer. Participei da pastoral da Juventude. Como todo jovem, eu queria salvar o mundo, mas não sabia o que salvar primeiro. Eu tinha feito o magistério, e chegou a hora de entrar pra faculdade. Acabei indo para o Direito, escolha que durou apenas um ano. Em seguida parti para a Arquitetura. Se minha mãe exerceu influência na escolha do magistério, a inclinação pela arquitetura veio por meio de meu pai, que trabalhava na construção civil como mestre de obras. No início, não vislumbrei o lado social da arquitetura. Essa descoberta veio ao longo do curso e do envolvimento com o movimento estudantil. Fui presidente do Diretório Acadêmico de Arquitetura; fui vice-presidente do Campus 8 da UCS. Por meio do movimento estudantil acabei indo para encontros nacionais de arquitetura e aí eu consegui ver várias questões, né?
O arquiteto é aquele profissional que pensa, estuda e planeja a cidade a questão urbana, né? Foi no movimento estudantil que despertei para a questão da habitação, para o uso social da cidade, para questões de sustentabilidade, para o meio ambiente.
E quando foi que chegou a política pra valer?
Aí, já com outra visão da arquitetura e da própria cidade, em 2007, a então Deputada Marisa Formolo me convidou para trabalhar com ela. A partir daí, cerquei-me de um grupo de políticos locais que exerceram grande influência em minha formação: Deputado Pe. Roque Grazziotin e Geci Prates. Eu estava com 24 anos de idade (2008) e eles começaram a me incentivar/pressionar, apelando para a importância da presença feminina e da juventude na representação do Partido. Com medo, aceitei o desafio. Acabei sendo a primeira mulher jovem eleita na câmara de vereadores. Naquela época eram 17 vereadores. No segundo mandato, já éramos 23 vereadores, e eu continuava sendo a única mulher.
E aí, no terceiro mandato, meu colega Beltrão afastou-se, tivemos o impeachment da Presidenta Dilma. Foi um período bem difícil. Foi, também, a primeira vez que uma mulher entrou em licença maternidade. A Câmara nem tinha requerimento. Nenhuma mulher tinha tirado licença, né? O Eduardo, meu filho, foi criado na câmara, até um trocador colocaram lá.
No terceiro mandato, Caxias teve o impeachment do Prefeito Guerra, contra o qual votei. Desse período, lembro dessa sessão clássica, que durou 54 horas. Foi a maior sessão da história da Câmara. “Esse meu voto desagradou a muitos, mas sempre tive posicionamento, independentemente de a casa estar cheia ou não. O que é o certo, é o certo.” E isso meus eleitores reconheceram.
Nos pleitos de 2008, 2012, 2016 e 2020 consolidei meus eleitores e, por ser mulher, por estar solo nessa condição na Câmara e ser do PT, posso dizer que “apanhei muito". Em 2018, concorri a deputada estadual e não me elegi. A deputada Marisa deixa de concorrer a deputada estadual o partido decide trabalhar minha candidatura como substituta. Mas o deputado Pepe resolve vir a estadual. E aí atravessou o samba. Eu não podia retirar, né, principalmente por ser uma liderança feminina. A gente sempre precisa ter essas lideranças mulheres.
Obviamente, eu não faria uma campanha contra o Pepe. Então, pensamos: – De que forma eu poderia contribuir? – Fazendo o debate de gênero, que demarcaria nosso espaço. Nosso comitê era uma kombi, que a gente chamava de gabinetona, decorada com imagens da Frida Kalo, da Dandara. Parávamos em locais onde víamos movimento e fazia o debate das e com as mulheres. Foi uma campanha bem divertida e alternativa, que justamente por isso conquistava pessoas. Essa campanha, com certeza, somou para nossa votação em 2020, que foi a maior obtida.
É um salto bem grande, né? Já foi, na verdade, quando presidi a Câmara Municipal em 2022, ano em que se criou uma frente anti-PT. Essa eleição à presidência da Câmara foi concorrida e difícil. Somente três mulheres presidiram a Câmara Municipal de Caxias do Sul: Raquel Grazziotin, Geni Peteffi e eu, e do PT tínhamos tido somente o vereador Daneluz na presidência. Então, teve um grupo ligado a Bolsonaro, que liderou uma frente anti-PT e fez de tudo para que eu não presidisse a Câmara.
“É muito difícil presidir a Câmara, porque tu não tens o voto popular. Tens o voto do partido, mas nunca se tem maioria absoluta mesmo dentro do partido”.
Entre o primeiro e o segundo turno, eu quase morri de gastrite, porque eu também fiquei preocupada de ser uma deputada de oposição do governo Bolsonaro. Agora, percebo que é muito legal ter presentes os problemas da cidade como vereadora e poder estar lá, vendo várias possibilidades para resolver.
Quando cheguei na Câmara dos Deputados, eu percebi várias questões. Por exemplo: Fake news e distorções do que se disse foram questões que enfrentei muito em Caxias do Sul, mas vejo isso ampliado em Brasília. Então isso sempre está muito vivo, né? Tomo ainda mais cuidado a partir do lugar que passei a ocupar.
Daqui se tem uma visão mais federal, mais geral, assim como questões mais complexas, que vão além do “local” e até mesmo de visão de sociedade. Tenho certeza de que não vou deixar de pensar na Serra e na minha comunidade. Mesmo a visão local se expande.
Temos contato com outros municípios e regiões do estado. E aqui nos aproximamos de outros contatos, de ministérios. Isso me possibilitou, por exemplo, obter recursos para o Hospital Geral e para o Hospital Pompéia. Nos aproximamos, também, de uma questão muito cara para a região da Serra gaúcha que é o aeroporto de Vila Oliva e temos muitas pontes abertas para projetos futuros. A pavimentação para o interior também está na lista, assim como a pavimentação de áreas urbanas. Caxias tem muitas áreas urbanas sem pavimentação, assim como loteamentos irregulares.
A gente não consegue destinar emendas para essas áreas porque a prefeitura não tem um plano de mobilidade. Esta é uma demanda que persiste faz anos. Caxias, a segunda maior cidade do estado, não tem um plano de mobilidade. Isso implica o trânsito caótico, a falta de segurança para pedestres e ciclistas. O transporte público é afetado, refletindo no desperdício de tempo de trabalhadores. Na perspectiva das mulheres, por exemplo: tu chegas em casa tarde, a rua não é iluminada e ainda tens que te desdobrar nas tarefas domésticas, depois de ficar um tempo enorme dentro de um ônibus.
Eu hoje integro a Comissão de Transportes na câmara dos deputados, justamente pra pensar todas essas questões. Não vejo muitos aderindo à discussão do transporte coletivo urbano, embora seja uma questão fundamental, um dever do Estado. Hoje o transporte coletivo urbano é ineficiente e caro.
Saúde, mobilidade, infraestrutura urbana, são questões fundamentais para uma cidade. Eu atuo na comissão de transportes, na comissão de desenvolvimento urbano (habitação, direito à moradia, legislação/regularização). Participo também da Comissão de Cultura, que ficou muito defasada no governo anterior, o que soma para a não formação de pessoas críticas.
Obviamente, nossos projetos estão, em sua maioria, enlaçados às questões da mulher. Por exemplo, vincular dados cadastrais do pai ao E-social, o que garante a não interrupção do pagamento de pensão alimentícia, ou em relação à Lei Maria da Penha, que diz que mulheres vítimas de violência e com medida protetiva não poderiam perder o emprego nem o salário, mas não explicita quem paga o salário? E as autônomas, como ficam? Tudo é mais difícil.
Saúde é outra questão central. A pandemia, revelou o que nós já tínhamos de fragilidade. E aí só agravou mais ainda. Então a gente tem aí vários desafios. Nessa área, o que eu vejo em Caxias? E a partir do novo governo, parece que as pessoas acharam o caminho de Brasília de novo. Já houve dia em que atendi 80 pessoas.
Com relação à reforma tributária, a gente acabou debatendo, estudando vários avanços, né? Tivemos, por exemplo, isenção na questão da cesta básica. Aí vem a pergunta: o que isso tem a ver com mulheres? Hoje, no Brasil, quem mais compra comida são as mulheres. Os homens são quem mais compra bens, como motocicleta e carro. Tem uma questão de gênero de fundo. Muitas mulheres são chefes de família. Então, a gente entendeu que se conseguisse isenção de tributação na cesta básica, a gente atingiria todas as mulheres. Começamos com um grupo bem pequeno, depois a gente foi ganhando espaço para a bancada feminina, que encampou tudo isso e aí a gente conseguiu.
Havia um grupo de trabalho debatendo a reforma tributária. Eram somente homens. Aí, a gente fez um seminário, em março, e começou a questionar isso daí. Então, incluíram uma deputada, mas somente uma. Então, ela era meio que nossa porta-voz. Aí a gente promoveu o debate. Começamos a debater essa questão da cesta básica, buscando formas de alcançar um jeito tributar menos as mulheres.
O grupo de estudos percebeu que os produtos direcionados às mulheres tinham impostos mais caros, desde uma gilete. Camisinhas são mais baratas do que anticoncepcionais. Uma bomba de amamentação tem mais imposto do que uma bomba de encher pneu. Viagra tinha menos impostos do que absorventes. Conseguimos isenção de tributação no absorvente a partir dessa discussão. Estudamos, também, a questão do cash back considerando o recorte gênero e raça.
Essa questão já era forte na Câmara Municipal. Tanto eu quanto a colega vereadora Estela Balardin sofríamos ataques direto. Éramos mulheres, com o agravante de sermos de esquerda, então formávamos uma espécie de polo. Mas, quando eu chego na Câmara dos Deputados, o que eu percebo – claro que a gente aumentou a bancada feminina nessa última eleição – é que, diferentemente de ser polarizado como numa câmara menor, como a de Caxias, a impressão foi de que a gente era invisibilizada. Isso me chocava profundamente.
Parecia que as coisas eram debatidas onde nós não estávamos e as decisões pareciam tomadas sem que nós participássemos. Mas ao mesmo tempo, nos momentos mais difíceis dentro do plenário, por exemplo, na questão do debate do Marco Temporal, eu percebo que as mulheres, especialmente a bancada feminina de esquerda, são as mais aguerridas lá no plenário, não é coincidência que a gente tem hoje um processo de cassação de sete deputadas.
Então, o que que a gente percebe? Um deputado, por ser conservador, tolera ouvir um monte de baixaria de outro homem. Agora, não pode ouvir um A de uma mulher, né? Então, se ouvirem um A de uma mulher, parece que ofendeu a alma da mãe dele. Então quando cheguei e percebi isso, comecei a refletir: Bem, como me organizo nisso? A bancada gaúcha do PT tem três deputadas, todas muito parceiras. Sinto-me segura dentro da bancada feminina do PT. Então, sem analisar as particularidades de correntes/tendências de partido, a questão invisibilidade existe. Há temas que não são debatidos na câmara com as mulheres e dizem respeito a elas.
Em termos de futuro já que esse desafio da eleição tu venceste. E daqui pra frente? Algum plano para a Prefeitura, por exemplo?
A questão da disputa de vagas é algo que se dá em ampla discussão e avaliação dentro do partido. O sujeito pode até aspirar a uma prefeitura, por exemplo, mas a avaliação dessa disponibilidade sempre vai passar pelo cenário que melhor se desenhar para o partido.
Certo, mas independente disso, qual teu olhar para, por exemplo, a disputa da Prefeitura de Caxias do Sul?
Eu amo Caxias, sempre amei e minha trajetória política mostra isso. Posso trabalhar pela cidade aqui ou em Brasília. Ser prefeita de uma cidade implica muito mais dificuldades, embates, enfrentamentos, com certeza. Na Câmara, tento da melhor forma possível, atender as demandas da nossa região. Vejo a importância de ter contatos, estabelecer pontes. Sempre amei a política e sempre tive o mesmo modo de ser na política, independentemente de onde estivesse.
Sempre tentei construir. Sempre olhei para as coisas de forma coletiva, desde o movimento estudantil. Aquela Denise lá de 2008 concorreu despretensiosamente, mas com boas intenções, com sentimentos positivos, tentando sempre agregar e deu certo.
E a família? Confesso que às vezes tenho algum nível de dificuldade em conciliar a convivência com meu filho, Eduardo, não poderia negar. Vou e volto todas as semanas. A rigor, saio no domingo, chego em Brasília às 7h30min, vou direto para o trabalho, e volto na quinta, à noite. Na semana de votação da reforma tributária, por exemplo, o trabalho era direto, de segunda a sexta. Depende do momento político, da minha agenda pessoal...
Onde se cruzam a Denise profissional e a Denise deputada federal?
Até por minha formação como arquiteta, estou bastante implicada nas questões do transporte e da organização urbana. Em Caxias do Sul, mesmo antes de me eleger vereadora e até como estudante, sempre trabalhei com as questões da urbanização, mesmo que por um período curto. Fiz duas especializações, na área de gestão pública e na administração de cidade. E sou servidora pública licenciada [agente administrativa].
Como tu avaliarias os pontos fortes e os pontos fracos do governo Lula, e até mais especificamente a Reforma Tributária?
Bem, a Reforma Tributária não tem [e nem poderia ter] efeito imediato, mas ela será muito positiva. Pra Caxias do Sul e seu setor industrial ela será muito benéfica. A questão do IVA, que já é modelo em vários países da Europa também é positiva.
Independentemente de ser da esquerda ou da direita, acho que foi uma grande vitória do governo em conseguir aprovar a reforma ainda no primeiro semestre.
A gente tem hoje o menor índice de desemprego dos últimos 10 anos. O preço das coisas está caindo. Então a questão econômica, eu acho que é um dos pontos fortes do governo Lula para a população. E a questão da relação de forças que se dá com os oposicionistas na Câmara oferece, dificuldades em algumas questões. Um ponto fraco, eu diria, é o Banco Central, que consegue ter juros muito acima da inflação, né?
Casos como o assassinato de Marielle Franco, venda/revenda de joias..., repercutem como dentro da Câmara?
Algumas pessoas não têm dificuldade ou receio de defender o indefensável. Nesse sentido um grande problema é a pressão de youtubers, prova disso é a dificuldade em fazer avançar o projeto que dá conta de tratar das Fake News. Nessa questão circula muito poder, muito dinheiro, muita pressão...
É grave, também, a falta de transparência na questão dos algoritmos, no como, de fato, é entregue a notícia né? E por que que eu recebo só notícia de um jeito? Tenho autoridade para dizer isso porque fui vítima de fake news, em grande medida, quando vereadora, em Caxias do Sul. O mesmo ocorreu com a colega Estela Balardin, também vereadora da bancada do PT.
Houve momentos na Câmara que eu sabia o que iria dizer, mas sentia medo, porque não sabia no que é que transformariam as minhas palavras e olha que eu já tinha quatorze anos de Câmara Municipal.
Como você percebe a repercussão de grandes questões como aquele vídeo de ofensas não ministro Moraes, questões que envolvem o STF, a urna eletrônica, o Banco Central... Que são várias contas, de um colar que a direita vem amarrando, como por exemplo, o ex-deputado Dallagnol, o ex-juiz Moro, a morte da vereadora Marielli Franco e seu motorista, são grandes nódoas no cenário político nacional?
Na questão da Marielle: ninguém mata uma vereadora no Rio de Janeiro sem ter costas muito quente. Tem muita combinação nesse negócio. Da mesma forma, a dificuldade em se acessar os mandantes do movimento terrorista do 8 de janeiro. Penso que, de fato, existem umas cinco ou seis grandes questões [que incluem a violência] que o governo precisa administrar de modo firme e urgente.
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